2018-09-05

Covilhã, Boidobra - CAPELA DE SANTA MARIA DA ESTRELA (Séc. XIII)

Boidobra, Capela de Santa Maria da Estrela.

O Mosteiro de Santa Maria da Estrela foi mandado edificar – ou reconstruir? –  no ano de 1220, num vale ermo situado no sopé da Serra da Estrela, junto ao pequeno povoado da Boidobra, então a 5 Km da Covilhã.
Esta iniciativa ficou a dever-se a Dom Mendo, o Abade do Mosteiro de Santa Maria de Maceira Dão, em Mangualde.
Deste modo, esta comunidade monástica, aqui procurou um regresso às origens da Regra de S. Bento na busca do ascetismo e do trabalho como valor fundamental.
D. Egas Moniz (f. 1146).
Segundo a tradição, pela primeira vez dada à estampa por Fr. Bernardo de Brito (1569-1617) na sua «Crónica de Cister» (Lisboa, 1602), tratou-se de uma refundação, pois, este mosteiro já existia anteriormente num local próximo, encontrando-se na mais completa ruína devido a um incêndio ocorrido na véspera de Natal.
A sua primitiva fundação (1161?) terá ficado a dever-se a Lourenço Viegas “o Espadeiro” (c.1110 - c.1160), alferes-mor do rei D. Afonso Henriques (1129), em cumprimento de um voto do seu já falecido pai D. Egas Moniz (f. 1146) “o Aio” de nosso primeiro rei. Este, de passagem por esta região onde fora em socorro de algumas povoações que os Mouros andavam destruindo, fez uma pausa para aí se entregar ao exercício da caça de porcos-monteses quando foi violentamente atacado por dois Ursos, dos quais se salvou por invocação de Santa Maria.
Em memória deste milagre que lhe salvou a vida, cuja memória desejava perpetuar, aí fundou uma igreja e encomendou a seu filho D. Lourenço a edificação da pequena abadia para cultuar a citada Santa Maria, protectora do reino de Portugal. A esta anexou, para sustento dos monges, algumas herdades que tinha na região[1]. 
Este mosteiro, filiado no de Santa Maria de Alcobaça da Ordem de Cister, dos beneditinos reformados, também foi conhecido por Nave da Estrela de Boidobramosteiro de Santa Maria da Covilhã, ou Maceira de Covelliana (Maceira da Covilhã) como aparece designado no testamento do rei D. Afonso III (1271) que lhe deixa 100 libras.
Boidobra, pontão.
Os monges cistercienses, procuravam para assento dos seus conventos os vales férteis nos quais criavam animais e desbravavam a terra de cultivo com as suas mãos, junto a cursos de água abundante. Neste caso, o mosteiro está situado perto de uma pequena ribeira situada a 50 metros da capela, na qual está implantado um tosco pontão de um arco de granito, provavelmente romano ou medieval, sem guardas, nem tabuleiro, a cerca de 200 metros da margem direita do Rio Zêzere.
Tudo isto, longe do bulício urbano para lhes permitir o recolhimento, a oração, e a contemplação divina.
Além das edificações para os poucos monges que a ele se acolheram, dispunha, por doação, várias terras, em grande parte incultas e cobertas de matagal. Estas seriam desbravadas para a cultura de cereais e plantação de vinhedos, uma das riquezas da época.
Boidobra, Quinta. da Abadia.
A sua principal herdade, então de apreciável vastidão para esta região, foi-lhe doada pelo fundador D. Egas Moniz e estendia-se ao redor desta capela, tendo ficado consagrada na toponímia local pelo nome de Quinta da Abadia[2] 
O seu património fundiário acabaria aumentado ao longo do tempo por herdamento e escambo (troca) com outras herdades e casais situados a alguma distância da sua sede, mas com melhor aptidão agrícola. Deste modo, por volta de 1498, tornou-se um importante núcleo produtivo a sul da sede de concelho da Covilhã, com bastantes terras, mas “de mujto pouca Renda[3].
Entre estas, segundo investigação histórica do covilhanense Luiz Fernando de Carvalho Dias[4], incluíam-se algumas herdades e courelas nos termos da Covilhã, Caria, Penamacor, Sortelha, Medelim (Idanha-a-Nova), no Tentilhoso (localização desconhecida no termo da Covilhã), no Ferro, no Tortosendo, na desaparecida Carantonha (povoação que deu origem à freguesia do Telhado, Fundão)[5], e a terça das aldeias da Capinha e da Rapoula «a quall chamam o vall das ovelhas» (Fundão).
Deste património fundiário constavam numerosos pequenos prazos em vidas, dos quais cobravam foro; tais como os prazos da Capinha (Fundão); assim com, em locais mais distantes, os de São Cristóvão de Nogueira (Cinfães) e Ariz (Moimenta da Beira), no Distrito de Viseu[6].
Agricultores, Missal antigo
do Mosteiro de Lorvão.
Os inovadores métodos agrícolas dos monges de Cister contribuíram para o desenvolvimento da agricultura da época. Assim sendo, este mosteiro, apesar do clima adverso desta região com Invernos rigorosos e Verões muito quentes, e dos solos com fraca aptidão agrícola e ainda com matagais por desbravar, acabou por prosperar e «rapidamente assumiu, perante as populações locais, um carácter de senhorio”, originando alguma contestação, nomeadamente sobre as citadas terças que lhes pertenciam e eram disputadas pelo prior da Capinha que indevidamente as recebeu durante muitos anos (Vicente, 2012: 43-48,75, 103-104).
Porém, as suas instalações conventuais, nunca totalmente concluídas, apresentavam muitas carências.
Segundo refere o cronista Fr. Hilário das Chagas, na Carta de Visitação de 11-II-1533, o mosteiro parece um simples ermitério com «Casa mal feita e mal proporcionada em toda a sua feitura.» (Cocheril 1970: 573). 
O abade Pedro de Aguiar (1533), que preferia viver em Alcobaça devido à falta de condições desta abadia, sobre ela referiu que «…segundo sua pobreza se pode mais chamar oratório que mosteiro… e portanto os vizitadores que pellos tempos vierão a este Reino nunca a foram visitar por saberem que era huma casa muito pequena e pobre.» (Cocheril 1970: 573).  Foi este abade que mandou colocar um telhado novo na igreja, mencionando que «…eu fiz a dita Igreja de novo no q. guastey mais de cincoenta mil reis de maneira que nestes dous anos que sou abbade repayrey e fiz mais obra na dita casa do que fizerão os outros abbades meus antecessores enquanto forão abbades pois que estando a igreja tam denificada e pera cair há tanto tempo nunca a mandaram renovar» (Cocheril 1970: 573).
O abade de Claraval D. Édme de Saulieu, na companhia do seu secretário Claude de Bronseval, visitou o Mosteiro de Santa Maria da Estrela a 10-II-1533 e refere o seguinte:

«No dia 10, partimos depois da missa da manhã e descemos um vale de oliveiras. Um pouco mais longe apareceu a vila da Covilhã situada na montanha e rodeada de bosques de castanheiros e de oliveiras, sobre um fundo de altas montanhas a norte cobertas de neve. Seguimos sempre uma ribeira no fundo de um vale inserido numa grande região pouco fértil, até encontrarmos o Zêzere (…). O mosteiro da Estrela encontra-se ao lado numa planície. / Este Mosteiro encontra-se hoje [1533] na diocese da Guarda. Todas as dependências estão absolutamente arruinadas e perante esta desolação nem parece ter existido aqui, em tempos, um mosteiro. / O Abade chamava-se Fr. Pedro de Aguiar. Era monge de Alcobaça e exercia o cargo de prior. Havia dois monges de Alcobaça neste mosteiro: um padre e um converso. Receberam o Monsenhor como ignorantes e a custo foram capazes de o conduzir ao oratório. Não havia cerca. A Igreja é pequena. O abade havia mandado recobri-la dois anos antes. Não havia sacramentos. Quatro bancos dis­postos um aqui e outro ali no presbitério serviam de coro aos monges. Todos os edifícios são contíguos à Igreja e posicionam-se em direcção ao sul. Não se vislumbra traço do claustro: todo o local foi invadido por árvores. / Vejamos o que posso dizer deste mosteiro, para além de que para serviço destes dois irmãos havia quatro mulheres que não sossegaram à nossa chegada, mas que mantinham o local realmente fechado como se fosse a sua própria casa. Elas iam e vinham para todo o lado, perfeitamente acostumadas a proceder dessa forma. / O monge afirma em consciência, ao Monsenhor, que o mosteiro poderia valer 700 000 reis por ano (…). Durante os três meses de Julho, Agosto e Setembro existe, ao que parece, um tal calor que ninguém deseja residir no mosteiro porque a humidade é intolerável. O calor juntamente com a humidade prejudica a saúde dos seus habitantes. Este monge foi aqui enviado, há apenas dois anos. Ele não recitava as horas canónicas no oratório. Eu toquei o sino para as vésperas, que recitamos no presbitério e durante as quais pude observar que este monge fazia bastantes erros na recitação do seu oficio. / No dia 11, Monsenhor celebra a missa à aurora. Em seguida ocupa a Sala do Capítulo onde obriga os dois irmãos a ler e comentar a Carta de visitação e prepara-se para a partida.»  (Bronseval, XVI: 571-573).

As más condições das suas edificações e a sua insalubridade, atestadas por testemunhos coevos[7], levaram á falta de monges que a ele se acolhessem, facto este que levou esta casa à ruína e precipitaram o seu fim. Os conventos covilhanenses de São Francisco (Séc. XIII) e Santo António (1553), eram muito mais atractivos para o despertar das vocações monásticas…
Pedras ao redor da capela,
do Mosteiro desaparecido.
Apesar destas limitações durou pouco mais de duas décadass até lhe ter sido posto fim a 1-V-1579 pelo Capítulo Geral reunido no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, passando os seus bens e receitas a reverter para Colégio de São Bernardo de Coimbra, então situado na Rua da Sofia da citada cidade[8].
Mais tarde, à data da extinção das ordens religiosas (decreto de 30-V-1834), os seus bens acabariam incorporados nos Próprios da Fazenda Nacional e posteriormente vendidos em hasta pública a particulares. Desconhecemos quem os licitou.
Do desaparecido mosteiro, os únicos vestígios visíveis que restam são algumas pedras de média dimensão que ainda são visíveis em muros que delimitam algumas courelas existentes na cercania da capela.
Quanto ao seu acervo documental, então incorporado no Colégio de São Bernardo de Coimbra, acabaria depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa: é o caso do «Livro dos Erdamentos e terras…» (heranças); e o «Tombo dos Bens do Mosteiro de Santa Maria da Covilhã, em Boidobra e Tentilhoso e outras terras», datado de 1456 e feito por Frei Benedito de São Bernardo (1680).



CAPELA DE SANTA MARIA DA ESTRELA
Actualmente, oito séculos depois da fundação deste antiquíssimo Mosteiro, tudo o que dele resta resume-se à pequena e modesta capela de planta rectangular, cuja traça medieval foi completamente adulterada por diversas reconstruções; uma das quais por volta de 1530, por iniciativa do Abade Fr. Pedro de Aguiar que então a encontrou no mais completo declínio.
Ao desleixo, e aos acontecimentos e catástrofes que a levaram várias vezes à ruína este pequeno templo, opôs-se com afinco a população da Boidobra que a terá reconstruído por diversas vezes para preservar a memória da existência da Senhora da Estrela.  
Este pequeno lucal de culto de planta rectangular, tem origem no oratório original do mosteiro, um dos mais antigos do concelho da Covilhã. Nele se venera “uma imagem de pedra, encarnada ao gosto do século XVIII”, na descrição de Luiz Fernando Carvalho Dias[9].










Capela de Sta. Maria da Estrela,
Portal da fachada Sul.




Capela de Sta. Maria da Estrela,
fachada Sul.














 


No seu interior, uma nave única e ampla tem vestígios do arco triunfal de volta perfeita que antecede a capela-mor. Os revestimentos originais, com o respectivo retábulo de talha, há muito desapareceram.
Tem uma cobertura de duas águas e as suas modestas fachadas são de cantaria de granito com um aparelho rústico.

Arco de volta perfeita e retábulo
da capela-mor (ano 2001)
Altar-mor, após a retirada
do retábulo (ano de 2011).
Arco de vilta perfeita
(pormenor).


Na sua frontaria, que dá para um adro, temos o portal principal de verga recta, encimado por uma enigmática pedra de armas, aí encastrada em data indeterminada, provavelmente vinda de outro local. 
Capela de Sta. Maria da Estrela.
Este BRASÃO, aparentemente do século XVI, ou anterior, parece ser uma representação irregular das armas da família FALCÃO. Terá sido colocado na fachada durante uma reconstrução posterior ao século XVI, carecendo de uma profunda investigação quanto à sua enigmática iconografia heráldica, a qual aqui não segue o cânone de representação desta família.
Adossada no exterior da fachada Norte, apresenta um lanço de escadas que conduz ao coro alto a partir do exterior.
Na fachada Sul, apresenta um outro portal de verga recta. Seria, supostamente, deste lado que se desenvolveriam as desaparecidas dependências monásticas que, passados tantos séculos, não deixaram o menor vestígio.
Pedra de armas da família
FALCÃO (?).
A partir desta capela situar-se-ia a casa do cabido, e talvez «existisse um claustro adossado ao templo, entre a ala dos monges e a dos conversos, que seriam perpendiculares à igreja, tendo em conta que deveria existir o fechamento deste claustro, com uma ala oposta à igreja, onde se trataria das necessidades do corpo, mais do que do espírito, seria a ala do refeitório, da cozinha e do calefactório.» (Martins, 2011: 11).
A romaria de Nossa Senhora da Estrela, vinda talvez dos alvores da nacionalidade, foi no passado uma das grandes romagens da região que atraía grande parte da população da Covilhã. Celebrava-se a 8 de Setembro, dia da Natividade, e passou actualmente a ser uma festa móvel festejada no domingo mais próximo desta data[10].


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Bibliografia:

BLOG “Covilhã – Mosteiro de Santa Maria da Estrela I. Acesso em: 31-VIII-2018. Disponível em
 http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2011/06/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html
BRONSEVAL, Frère Claude de (XVI). Peregrinatio Hispanica. Voyage de Dom Èdeme de saulieu, Abbé de Clairvaux, en Espagne et au Portugal (1531-1533) ed. Cocheril, Maur (1970) Paris: PUF.
DIAS, Miguel Nuno Peixoto de, Blog “Covilhã – Subsídios para a sua História”. Disponível em https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/
COCHERIL, Maur (1970). Introduction et notes, in BRONSEVAL, Frère Claude de; Peregrinatio Hispanica. Voyage de Dom Èdeme de saulieu, Abbé de Clairvaux, en Espagne et au Portugal (1531-1533). Paris: PUF.
MARTINS, Ana Maria Tavares (2011). Maceira de Covelliana: da cidade monástica à cidade do homem. Covilhã: Universidade da Beira Interior,  
VICENTE, Maria da Graça (2012). Covilhã medieval, o espaço e as gentes. Lisboa: Colibri História.

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Notas:


[1] DIAS, Luiz Fernando Carvalho. “Covilhã – Mosteiro de Santa Maria da Estrela I. Acesso em: 23-VI-2018. Disponível em https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2011/06/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html

[2] “Titollo Do Mostº de Sancta Mª destrella, no año do S.r de 1498 Annos”. In DIAS, Luiz Fernando Carvalho. “Covilhã – Mosteiro de Santa Maria da Estrela I. Acesso em: 31-VIII-2018. Disponível em http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2012/01/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html

[3] Op. Cit. “Titollo Do Mostº de Sancta Mª destrella, no año do S.r de 1498 Annos”.

[4] DIAS, Luiz Fernando Carvalho. “Covilhã – Mosteiro de Santa Maria da Estrela I. Acesso em: 31-VIII-2018. Disponível em https://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2011/10/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html

[5] Junto à freguesia do Telhado, ainda existem as ruínas de um pequeno lugarejo com o nome de Casal de Santa Maria, provavelmente alusivo a terras que estariam na posse da Abadia de Santa Maria da Estrela (na Boidobra).

[6] DIAS, Luiz Fernando Carvalho. “Covilhã – Mosteiro de Santa Maria da Estrela I. Acesso em: 23-VI-2018. Disponível em http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2011/12/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html

[7] Fr. Hilário das Chagas em “Memórias várias…da fundação do Real Mosteiro de Alcobaça”, e Fr. Pedro de Aguiar (1533) em “Apontamentos de frey pedro daguiar abbade do mosteiro de santa maria da estrela”.

[8] Juntamente com a supressão do Mosteiro de Santamaria da Estrela (Boidobra), também foi extinto o Mosteiro de Santa Maria do Ermelo (Arcos de Valdevez), e o Mosteiro de Tamarães (Ourém), do qual também já não há vestígios.

[9] DIAS, Luiz Fernando Carvalho. “Covilhã – Mosteiro de Santa Maria da Estrela I. Acesso em: 31-VIII-2018. Disponível em http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.com/2011/06/covilha-mosteiro-de-santa-maria-da.html

[10] Junto à Capela de Santa Maria da Estrela, recentemente foram edificadas duas pequenas construções de apoio à romaria anual. A sua volumetria, materiais utilizados, cromatismo e, acima de tudo, a sua proximidade à capela, afectam a coerência e integridade estética deste monumento secular, colidindo com o seu valor patrimonial que é urgente proteger.



Capela c/ anexos.
Capela com anexos de apoio à romaria.












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