João Pais do Sabugal
Idade Média (Século XIII)
1. INTRODUÇÃO
No
Verão de 2012, numa revisitação feita ao património da Capinha, deparou-se-nos
esta singular representação heráldica
que desconhecíamos. De imediato, pareceu-nos
estar na presença de um dos maiores achados heráldicos que tivemos o privilégio
de redescobrir no concelho do Fundão. Segundo apuramos, esteve sempre à vista
de todos nas últimas sete décadas, porém nunca terá despertado a atenção dos
especialistas.
Ficamos
a saber que esta pedra medieval foi colocada numa das fachadas laterais
da Casa do Adro, vinda de uma anterior que aí ocupava sensivelmente o mesmo
espaço.
Casa do Adro (moderna), Capinha. |
Quanto à mencionada pedra, logo despertou o nosso interesse, quer
pela sua antiguidade de muitos séculos, quer pela sua singularidade sem
paralelo nesta zona.
Não era de grande porte, quanto às suas dimensões, pelo que rejeitamos a hipótese de ter sido uma laje sepulcral. A ausência de qualquer símbolo religioso e a profusão de instrumentos bélicos que ostenta não se adequa ao fim piedoso de perpetuar a memória de um qualquer bom cristão, mas antes de afirmar o estatuto e o senhorio de alguém sobre o seu domínio. É uma representação heráldica bastante enigmática, pois, devido à sua grande antiguidade, não obedece às regras de composição dos brasões modernos.
Está encastrada a meio de uma das paredes laterais da actual Casa do Adro, do lado que dá para
a Igreja Matriz (orago de São Sebastião). Ao longo da base desta parede, corre
um volumoso embasamento do qual arrancam quatro poderosos contrafortes para sua
sustentação, aparentemente desnecessários sob o ponto de vista estrutural, e só
justificáveis por motivos estilísticos ou em memória de outros aí
existentes, como se sugerissem uma fortaleza. A fachada principal apresenta uma
pedra de armas plenas dos VASCONCELOS[2],
que competem ao chefe desta linhagem.
Das imediações desta casa arranca uma estreita rua que sobe em direcção ao topo de um outeiro muito próximo e é denominada rua do Castelo. Este topónimo parece consagrar a memória de uma torre defensiva outrora aí existente, a qual não deixou vestígios, senão a nível de alguma cantaria reaproveitada nas edificações posteriormente feitas. Conseguimos apurar que várias casas aí existentes, já durante o século XVII eram "prazos de vidas" (enfitêuticos), e pagavam foros à "Abbadia de Nossa Sñra da Estrella", como consta de um tombo desta instituição com a inventariação dos seus bens[3].
Não era de grande porte, quanto às suas dimensões, pelo que rejeitamos a hipótese de ter sido uma laje sepulcral. A ausência de qualquer símbolo religioso e a profusão de instrumentos bélicos que ostenta não se adequa ao fim piedoso de perpetuar a memória de um qualquer bom cristão, mas antes de afirmar o estatuto e o senhorio de alguém sobre o seu domínio. É uma representação heráldica bastante enigmática, pois, devido à sua grande antiguidade, não obedece às regras de composição dos brasões modernos.
Casa do Adro (moderna), Capinha. |
Das imediações desta casa arranca uma estreita rua que sobe em direcção ao topo de um outeiro muito próximo e é denominada rua do Castelo. Este topónimo parece consagrar a memória de uma torre defensiva outrora aí existente, a qual não deixou vestígios, senão a nível de alguma cantaria reaproveitada nas edificações posteriormente feitas. Conseguimos apurar que várias casas aí existentes, já durante o século XVII eram "prazos de vidas" (enfitêuticos), e pagavam foros à "Abbadia de Nossa Sñra da Estrella", como consta de um tombo desta instituição com a inventariação dos seus bens[3].
Segundo os seus actuais herdeiros, a nova casa foi edificada sobre uma anterior que datava de 1673; a qual, por sua vez, teria resultado de uma outra que supostamente já aí existia no período medieval. Segundo a citada família, a casa seiscentista "pertenceu a uma Maria Pais".
Casa do Adro (antiga), coluna. |
Casa do Adro de 1673 (antiga), Capinha, 1905. |
2. DESCRIÇÃO ICONOGRÁFICA
Esta representação heráldica
– assim por nós designada por não constituir uma regular pedra de armas – é constituída por um bloco de granito claro de
formato rectangular, resultante da justaposição de duas formas quadrangulares
cuja parte central foi truncada, pelo que desapareceram alguns dos seus
elementos. Está envolta por uma moldura de meia cana, aparente reconstituída
nalgumas partes.
Apesar de esculpida em
baixo relevo pouco cuidado, certamente da autoria de um inexperiente canteiro
local, tem várias peças heráldicas ainda legíveis, as quais nos fornecem uma
preciosa informação para a sua descodificação.
Caso não seja apócrifa, é
um exemplar raríssimo, se não único em toda esta região, de uma espécie de armas de senhorio e falantes, datada da
Idade Média. As armas de senhorio
eram concedidas aos donatários de terras e jurisdições de que eram senhores;
quanto às falantes,
eram assim designadas por terem alguma analogia com o apelido ou funções da
pessoa que as trazia.
Apesar da sua antiguidade,
não se encontra muito desgastada, pelo que supomos ter estado muito tempo ao
abrigo das intempéries, antes de ter sido colocada na actual fachada.
PEÇAS HERÁLDICAS
1. – Letra «J», no canto superior
direito. Aparenta ser uma diferença,
indicando o nome do seu destinatário,
2. – Cavalo empinado e enfreado, voltado à sinistra (direita do observador), numa das suas
raras figurações
heráldicas medievais. Este animal quase não figura na
heráldica desta época por ser considerado um
animal subserviente e sem bravura,
apesar de ser um dos recursos bélicos mais valiosos da cavalaria.
Neste caso,
parece indiciar a afirmação/ostentação do estatuto de cavaleiro, recentemente
adquirido.
Daí a sua inclusão.
3. – Basilisco/Serpente (?), um ser mitológico que é símbolo da
fortaleza, grandeza de ânimo e astúcia.
4.
– Montante (espada longa), com
guardas em forma de «S» e um pomo de
forma discóide, muito usado
pela cavalaria medieval. Está incompleta, devido à
parte central do rectângulo ter sido truncada.
5. – Maça de armas,
de cabo curto, usada pela cavalaria medieval para esmagar os crânios dos
soldados
protegidos por elmos metálicos. Também era usada pela infantaria e,
neste caso, tinha uma haste
bastante mais longa.
Representação heráldica, Capinha. |
simboliza a força, a grandeza
de ânimo e a valentia. Aparenta estar
encimado por um elmo.
representar o REINO DE LEÃO, assim como diversas famílias, das
quais, com ramificações nesta zona da Beira, conhecemos: os
GERALDES (ou Giraldes)[7], que por aqui deixaram vários ramos;
os CASTELO BRANCO (ou Castel-Branco) que tiraram o nome da
então vila de Castelo Branco; e os SILVA que tiveram o da senho-
rio da Torre da Silva (Valença), da qual tiraram o nome, e vieram a
ser alcaides de Monsanto e Penamacor.
7. – Cão de grande porte que poderá ser um lebréu representativo de
um ramo da família PAIS (Zúquete, 1961: 415)[8]. Não faz sentido
ser novamente um leão, como o do escudo, até porque não aparen-
ta ter juba.
8. – Foice de guerra, resultante da adaptação da similar alfaia agrícola,
capaz de cortar as frágeis armaduras da Idade Média com a pode-
rosa lâmina cortante virada para o lado externo. Usada como uma
lança, era uma arma devastadora.
9. – Punhal designado "mão-esquerda". Tinha duas lâminas embutidas na principal, cuja abertura era accio-
nada por uma mola, e estava vocacionado para aparar golpes de outras armas ligeiras, assim como a
conferir-lhe um triplo efeito perfurante.
m
quais, com ramificações nesta zona da Beira, conhecemos: os
GERALDES (ou Giraldes)[7], que por aqui deixaram vários ramos;
os CASTELO BRANCO (ou Castel-Branco) que tiraram o nome da
então vila de Castelo Branco; e os SILVA que tiveram o da senho-
rio da Torre da Silva (Valença), da qual tiraram o nome, e vieram a
ser alcaides de Monsanto e Penamacor.
7. – Cão de grande porte que poderá ser um lebréu representativo de
um ramo da família PAIS (Zúquete, 1961: 415)[8]. Não faz sentido
ser novamente um leão, como o do escudo, até porque não aparen-
ta ter juba.
8. – Foice de guerra, resultante da adaptação da similar alfaia agrícola,
capaz de cortar as frágeis armaduras da Idade Média com a pode-
rosa lâmina cortante virada para o lado externo. Usada como uma
lança, era uma arma devastadora.
9. – Punhal designado "mão-esquerda". Tinha duas lâminas embutidas na principal, cuja abertura era accio-
nada por uma mola, e estava vocacionado para aparar golpes de outras armas ligeiras, assim como a
conferir-lhe um triplo efeito perfurante.
Punhal "mão esquerda" |
Maças de armas. |
Foice de guerra |
m
3. HERÁLDICA MEDIEVAL
Os brasões usados pelos cavaleiros medievais nos seus pendões e escudos resultaram
da necessidade destes se identificarem e agruparem no campo de batalha, dando
assim a conhecer a sua posição relativa e facilitarem as manobras bélicas. Esta
simbologia era algo complexa e regulada por diversos códigos de formas e de
cores.
O escudo usado em Portugal, regra
geral carregava peças móveis que, no período
medieval, se caracterizavam por alguma arbitrariedade e fantasia: quer
por escolha própria (heráldica assumida), quer pela usurpação das armas alheias dos vencidos em
confrontos. Há menção de tais apropriações indevidas terem sucedido após a batalha
de Aljubarrota (1385), na qual alguns vencedores – a nobreza emergente da nova
ordem social – se apropriou indevidamente de brasões de famílias extintas por
terem seguido o partido de Castela. Estes factos levaram o rei D. João I
(1385-1433) a impor alguma ordem no uso dos escudos de armas, com a criação de
regras que atingiriam a perfeição no reinado de D. Manuel I (1495-1521), após sucessivas
reformas.
Seria bastante anterior a este período esta representação heráldica que, apesar de não obedecer a uma corretã
ordenação, é generosa nas informações que nos dá a respeito do seu
destinatário.
4. A ALDEIA DA CAPINHA
O território da Capinha tem revelado diversos vestígios da sua
antiguidade, tornando-a num interessante campo de investigação do passado
beirão devido às suas várias estações arqueológicas. Nas suas imediações há um
monte, referido nas Memórias Paroquiais (1758), chamado Vila Velha,
o qual terá servido de base à implantação de um povoado castrejo cujos
habitantes vieram fixar-se em zonas mais baixas durante a romanização, à
semelhança do que aconteceu noutros locais desta região.
Apesar de actualmente estar distante dos modernos eixos viários, já por
aqui passou uma importante via de comunicação que remonta ao período da
dominação romana. Esta fazia a ligação entre Mérida (Emerita Augusta) e Braga (Bracara Augusta), com passagem por Idanha-a-Velha (Igaeditania). Aqui bifurcava para a Covilhã e para
Sortelha.
Alguns historiadores apontam na sua proximidade a localização da tão
procurada Talabara romana,
baseados no facto de se ter achado, nas suas imediações, um epitáfio de um
indivíduo referido como sendo do vicus Talabara, porém sem confirmação.
Do seu passado, nos alvores da nacionalidade, pouco se conhece. Ao certo,
foi um território de fronteira com os muçulmanos e, seguramente, a sua
população escassa e predominantemente rural não passou incólume pelas lutas
constantes com este povo invasor; assim como com o reino de Leão até 1199. Só, por esta altura, com o fim de se
fixar a sua população, foram atribuídos alguns forais nas suas imediações: Covilhã (1186) a cujo concelho fica a
pertencer a Capinha, Centocellas (1194), Belmonte e Guarda (1199), Castelo
Novo/Alpreada (1202), Sarzedas (1212), Lardosa (1223), Castelo Branco (1212);
onde várias localidades foram entregues à Ordem do Templo que edificou redutos
acastelados para sua defesa.
Em
1297, o tratado de Alcanizes pôs fim às lutas que durante décadas assolaram o
interior raiano e definiu a fronteira[9].
O
detentor desta pedra heráldica, já andaria por cá um pouco antes desta data,
como veremos.
TOPONÍMIA
Quanto à origem do nome de aldeya de
Campia, como é referida nas Inquirições do rei D.
Dinis (1314), uma ingénua tradição local narra que "há muitos anos havia um velhinho que durante o
Inverno andava sempre de capinha porque tinha muito frio e então as pessoas
começaram a dizer: Lá está o velho da capinha”, epíteto que teria estado
na origem ao nome da aldeia... Sucede que nesta zona do interior, o frio
do Inverno é uma constante e o facto de alguém andar com uma "capinha" para dele se proteger, não
nos parece ser um acontecimento memorável – digno de ficar na memória –, até
porque este era um hábito comum. Também não conseguimos descortinar nas suas
imediações uma apreciável campina (planície extensa) que justifique este
topónimo.
A isto acresce que, o seu sufixo diminutivo (-inha) não vem de tempos imemoriais e pode ajudar a localizar no
tempo o aparecimento desta terra. O uso deste diminutivo aparece documentado
pela primeira vez em linguagem escrita nas Cantigas
de Santa Maria, datadas da
segunda metade do século XIII, atribuídas a D. Afonso X "o Sábio",
rei de Leão e Castela (Abreu, 2011: 886). A Capinha moderna não será muito
anterior a esta data, havendo outras localidades com o mesmo nome, o qual terá
vindo de alcunha, como presumimos.
Afonso Ix de Leão, iluminura. |
Para explicar a origem do topónimo, socorrermo-nos do medievalista
Armando de Almeida Fernandes (1917-2002), o qual diz que "Capinha é alcunha do século XIII e
certamente derivada de Capa (do latim cappa, parte do vestuário
que tapa a cabeça)" (Fernandes, 1983: Vol. XLII-4, 812). Esta
interpretação merece-nos crédito e justifica a lenda popular, mas carece de uma
explicação complementar.
O historiador Doutor Joaquim Candeia da Silva que abordou esta questão,
interroga-se sobre a possibilidade deste topónimo ser "uma evolução de Campo>campina?...", mencionando ainda a sua mais
antiga citação conhecida no "Códice 152 da Biblioteca Nacional,
datado de 19-VII-1260, que prova a existência de uma pequena igreja nesta povoação;
a mesma igreja vem no Cathalogo de
1320 designada por Santa Maria da Capinha da Rapoila"[10] (Silva, 1993:126,127). A Capinha
moderna, parece ser bastante anterior a 1260, sendo a Rapoula bem mais antiga.
Um texto posterior, o «Tombo dos bens do Mosteiro de Santa Maria da
Covilhã, em Boidobra e Tentilhoso (sic) e outras Terras»[11], refere:
«Saibam quantos esta carta virem como nos
frey Domjngos abbade e o quonvento do mosteiro de sancta maria da strella
fazemos carta a vos affonso pjrez morador na nossa aldea da Rapoulla e a
vossa molher maria donjz e a todollos que de pos vos vjerem para sempre. da nossa erdade. que avemos na dicta aldea da Rapoula a quall chamam o vall das ovelhas (…)
Item. doutra herdade a qua ll deu em descambo fernam paez e sua molher elvjra dominguez a quall avjam na capinha quall foj da parte de meem veegas e de sa molher dona luzia
como parte com hereos do detraz mem veegas e de sa molher dona luzia»[12].
Daqui se infere
que Vale de Ovelhas era uma herdade da aldeia da Rapoula, e esta era distinta da Capinha onde se achava um Fernando Pais. Todos estes topónimos
ainda existem no limite actual desta freguesia.
Quanto à Rapoila, que aqui surge novamente
associada a Capinha (Capinha da Rapoila),
parece provir de rapa (brássica rapa, nabo) + poula (prédio
rústico, terra de pousio) [13],
ou repolho (castelhano repollo);
ou até rapa (nabo) + -oula ou -oila
(sufixos diminutivos do baixo-latim com significado de pouca coisa / pequeno).
Há vários sítios designados pelo topónimo rapoula, e um deles, não longe de Vale das Ovelhas – onde o mosteiro tinha várias terras emprazadas
–, ainda subsiste no limite sul desta freguesa, bem perto da Torre dos Namorados e da contígua Quinta da Torre, topónimos que
sugerem a existência de outras torres defensiva medievais de que há alguns
remotos vestígios.
Este território, não longe das margens férteis da
Ribeira da Meimoa, além de produzir cereais e vinho, terá sido zona de hortas
onde a cultura deste tubérculo pelos pequenos camponeses terá prevalecido. Sabemos
que o nabo já
era consumido no período neolítico, e veio a tornar-se um recurso alimentar importante
na Idade Média; quer para homens, quer para
animais, especialmente entre as classes mais desfavorecidas.
Concordamos que a origem do topónimo é de facto uma alcunha (referente a capa), porém mal esclarecida até
hoje. Na verdade, parece nada ter a ver com o “velho que andava sempre de
capinha”, mas antes com um
acontecimento – este sim, memorável
– que impressionaria a população camponesa das terras que viriam a ser
posteriormente a aldeya de Campia. Referimo-nos ao
estabelecimento nessa localidade de um provável cavaleiro, pertencente à
pequena nobreza, que aí terá recebido terras para repovoar, e nas quais
edificou a sua casa-torre (daí
o nome da rua do Castelo). Imaginamos
que daqui partia com os seus peões (infantaria camponesa), armado e protegido
com a sua capa por cima da loriga para
integrar a hoste do concelho da Covilhã, ou de alguma ordem militar, nos
fossados que se faziam mais a sul[14], ou ainda
nas lutas que se travavam com o reino de Leão até ao tratado de Alcanizes
(1297).
Loriga (coifa ou capa) |
Túnica |
Perante os servos e pequenos agricultores livres que aqui labutavam os campos, um qualquer cavaleiro ou infanção que envergasse este traje militar, aparatoso e raro, deslumbraria esta humilde população, tornando-se – este sim – num facto memorável a merecer ao seu autor a alcunha, talvez depreciativa, de "o capinha": neste caso "o capinha da rapoula", nome que aparece documentado pela primeira vez em 1320, a propósito de uma pequena igreja de Santa Maria (Silva, 1993: 126,127). Daí a explicação, que presumimos para este topónimo[15].
5. ATRIBUIÇÃO
Face ao que conseguimos apurar, faltava a identificação do suposto
cavaleiro que aqui obteve algumas terras para as povoar e, deste modo, se esquivou
às pesadas obrigações impostas pelos senhorios religiosos e laicos que
vigoravam mais a Norte, de onde era originário.
Possivelmente procurava a ascensão social que a reconquista proporcionava
com a nobilitação pelas armas; ou então era um filho segundo em busca da sua
independência e do seu próprio quinhão; senão até por ordem dos freires do
Templo que neste concelho possuíram várias terras, algumas delas doadas por
particulares.
Presumimos ter tido algum destaque social e, por isso, esperávamos que
tivesse deixado algum vestígio documental da sua presença por estas paragens.
Com este fim, investigamos alguma bibliografia, forais, documentos
eclesiásticos, assim como as Inquirições Dionisinas feitas na Beira; após o que obtivemos alguns
resultados significativos.
Nestas Inquirições, no título Julgado da Covilhã, feito por
volta de 1314 deparou-se-nos:
«Julgado de Covilhaam / § Item A aldeia de canpia (sic) que foy de Johã de Sabugal he provado que entre hy moordomo e peitavam [pagavam] ende [daí]
vooz e cooima [multa] e
guaanhoua [apoderou-se dela] o moesteiro de maceira des [desde]
tempo del Rey dom ssancho [D.
Sancho II, 1223-1248][16] tio deste
Rey [D. Dinis, 1279-1325] e fez
ende [daí] honra e nom faz ende nada. § Seia devassa [anulado o couto ou
honra] e entre hy o moordomo del Rey por todollos seus dereitos ssalvo se há
hy previllegios» (Inquirições de D. Dinis, Livro 9: 33-35)[17] .
Templário |
Neste
documento, feito por volta de 1314, constata-se que a Capinha já estaria na
posse de um Johã de Sabugal, do qual não se provou ter carta régia para
aí instituir um couto, mas que presumimos ter sido cavaleiro nos alvores
do século XIII, talvez por volta de 1230, quando esta terra foi ganha pelo mosteiro de maceira. Dependia da
Covilhã, que tinha tido o seu primeiro Foral em 1186, dada por D. Sancho I
(1154-1211); no qual os cavaleiros eram uma classe privilegiada em relação a
outros grupos sociais, pois, segundo o seu articulado, estes serão em juízo
considerados como poderosos e infanções de Portugal. Esta importância,
advinha-lhes do facto de, por esta altura, estarmos em guerra com Aragão e a
cerca de um século de distância do tratado de Alcanizes (1314).
O pequeno Mosteiro da Maceira, ou
"Abadia de Maceira de Covelliana" – ou ainda Mosteiro de Santa Maria da
Estrela da Ordem de Cister, ou da Nave da Estrela de Boidobra
–[18], que
lhe “ganhou” esta terra desapareceu
no fim do século XVI e as suas rendas foram dotar o Colégio de São Bernardo de
Coimbra. Em sua memória apenas resta uma capela que substituiu a original: é Nossa Senhora da Estrela, junto à Quinta da Abadia, na freguesia da
Boidobra.
Sabemos que o Mosteiro de Maceira, ou de Santa Maria da Estrela, foi fundado
em 1220, e logo após a sua fundação, desagradado com a pouca aptidão agrícola de
alguns solos onde se tinha instalado, começa a adquirir terras com maior
aptidão agrícola ao longo dos cursos de água.
O seu Abade, D. Mendo, começa a fazer escambos (trocas) com propriedades no
termo da Covilhã, nomeadamente nas terras próximas da Capinha e da Rapoula, das
quais possuía as terças, e se tornariam
no seu mais importante núcleo produtivo a sul da sede de concelho. Este sucesso
ficou a dever-se aos inovadores métodos agrícolas destes monges de Cister que
contribuíram para o desenvolvimento da
agricultura da época. Deste modo, o mosteiro prosperou e ”rapidamente assumiu, perante as populações locais, um carácter de
senhorio”, o que originou algumas contestações, uma das quais sobre as citadas
terças, que lhes pertenciam, e foram
disputadas pelo prior da Capinha que indevidamente as recebeu durante muitos
anos (Vicente, 2012: 43-48,75, 103-104).
Alguma documentação deste mosteiro foi parar à Torre do Tombo: é o
caso do «Livro dos Erdamentos e
terras…»
(heranças); e o «Tombo dos Bens do
Mosteiro de Santa Maria da Covilhã, em Boidobra e Tentilhoso e outras terras», datado
de 1456 e feito por Frei Benedito de S. Bernardo (1680), segundo refere
Carvalho Dias[19].
Neste último livro, sob o título de boy dobra (Boidobra),
aparece referenciada uma carta de escambo de uma vinha à "ponte
de manta em colo [Mártir-in-Colo, na Covilhã] que ffoy del Rey"
na qual se descrevem as suas confrontações, uma das quais é "um souto
que ffoy de Joham Paaez do Sabugall" – agora mencionado com o apelido Paaez
–, aqui revelado um proprietário de terras que iam muito além do limite da
Capinha. Seria certamente um cavaleiro, ou até um infanção, a quem competiria a
defesa de um castelo menor, cujos rendimentos não seriam insignificantes.
Este João Pais, conforme aqui se constata, era um proprietário de terras
com alguma dimensão, do qual ainda havia memória à data desta informação, muito
tempo depois de aí ter vivido.
Por tudo isto, julgamos que esta representação heráldica lhe pertencia,
pois não parece haver referências documentais de qualquer outro homem notável
nesta aldeia, durante os primeiros reinados. Tudo indica ser originário do
concelho do Sabugal (então bem mais extenso), cuja sede ficava mais ao norte, e
da qual a Capinha dista pouco mais de 30 quilómetros.
Não sendo possível averiguar a data exacta
e os motivos que o levaram a fixar-se nesta nova terra, apenas podemos fazer
algumas conjecturas.
As terras do Sabugal terão sido tomadas por
D. Afonso Henriques por volta 1160 e, cerca de três décadas depois, foram perdidas
para o reino de Leão D. Afonso IX[20].
Este criou o Concelho do Sabugal (1190), cuja vila foi fundada em 1224,
dando-se então início à edificação do seu reduto defensivo.
Talvez não seja de excluir que o nosso João
Pais, perante a conquista do Sabugal pelo rei de Leão (1190), tenha ocupado um
território que lhe foi doado para repovoar um pouco mais a sul: a Rapoula, de onde viria a surgir a denominada Capinha. Podia até ser de origem
aragonesa, pois conhecem-se vários exemplos de cavaleiros e fidalgos, alguns
deles detentores de cargos palatinos, que durante a sua vida serviram
alternadamente ambas as cortes (Aragão e Portugal), entre as quais havia laços
familiares; quer nas respectivas dinastias reinantes, quer na sua nobreza
terratenente, como veremos. O
concelho do Sabugal estava integrado nas chamadas terras do Ribacôa e seria
reconquistado por D. Dinis, que lhe concedeu nova Carta de Foral (1296).
RELAÇÕES FAMILIARES
Mau grado a falta de documentação
que nos dê a filiação, descendência, ou outras relações de parentesco de João Pais do Sabugal (séc. XIII),
encontramos nesta zona geográfica inúmeros indivíduos, seus coevos, com o mesmo
apelido, mas sem provas de ligações de parentesco.
PAIS é um prenome de origem patronímica muito comum na Idade
Média, derivado de Paio/Pelayo, de Peláez/Pães (castelhano) ou Paes/Pais
(galaico/português), o qual está presente nas grandes linhagens medievais
portuguesas, cuja descendência teve expressão nas Beiras.
A maioria destes, têm origem
longínqua em Mónio Osores de Cabrera (c.
1110), conde de Cabreira (no concelho de Almeida), terra que estava na
posse D. Afonso VI (1039-1109) rei de
Leão e Castela. Mónio Osores foi casado com D. Boa Nunes de Grijó (1120-?), da
qual teve 3 filhos (Pizarro, 1997: 817-821), sendo o primogénito D. Paio Moniz da Ribeira (c. 1140) [21],
rico-homem e alferes-mor (1199-1202) de D. Sancho I que lhe fez muitas doações e
deu a tenência de Lanhoso
(1200-1202), casado com D. Urraca Nunes de Bragança (c. 1150), da qual
teve, entre outros: o filho primogénito D. Martim Pais, seu sucessor;
um outro filho que foi D. Nuno Pais Ribeiro (c. 1170) casado com D. Mor Pais Ribeiro, cuja descendência se
implantou nesta região[22]; assim como
uma filha que ficou célebre pela sua beleza e foi D. Maria Pais (1176?-1256?),
"a Ribeirinha"[23], barregã do rei D. Sancho I
(1154-1211), ao qual deu 6 filhos bastardos cuja descendência se espalhou pelas
Beiras, dando origem à maioria dos Sanches.
Um destes, o filho varão Gil Sanches (f. 1236), juntamente com seu
tio (?) Paio Pais (c. 1213), foi donatário de algumas terras no então
concelho da Covilhã, como veremos.
Nesta região, e nesta época, são conhecidos alguns seus coevos com o
mesmo apelido que aqui deixamos registados cronologicamente, embora se
desconheça a sua relação com o nosso João Pais do Sabugal:
Pedro
Pais (c. 1190?), que figura no Foral
da Guarda (1199), onde a propósito dos limites deste novo concelho junto à
Ribeira da Meimoa, provavelmente não muito longe da Capinha, se diz que passam
"pelho Pego de Carro e pelhas quebradas
de Meymona[24] e pelha arança [herança] de Pedro
Paiz e pelho val da Egua e per Besaguada e per Elgia como vay ao
Valhe d’Alcaydes e fer en Tejo…".
Raimundo
Pais (c. 1199) que D. Sancho I (1154-1211) fez
tenente (tenens) da Covilhã em
1199 em recompensa dos seus serviços, o qual assina como testemunha o foral da
Guarda como "Reymondo Paiiz que enton tiia Covilhaa" (1199);
assim como a doação da Idanha á Ordem do Templo.
Paio
Pais (c. 1213), o já mencionado
donatário de pelo menos dois herdamentos na Beira, e certamente parente muito
chegado da já citada Maria Pais (1176?-1256?).
A este, em conjunto com o clérigo e primeiro trovador galaico-português Gil
Sanches (f. 1236)[25], bastardo
do rei D. Sancho I (1154-1211) com a Ribeirinha, foram por aqui concedidas
algumas terras. Uma destas, doada pelo Concelho da Covilhã em 1210,
satisfazendo um pedido escrito do rei D. Sancho I para obterem um "herdamento
com terras", o qual lhes foi concedido "para que povoem, criem
e lavrem, e sejam reconhecidos por moradores dentro do termo da Covilhã".
Daqui resultou, mais tarde, a vila de Sortelha
que receberia o foral dado por D. Sancho II (1228). Por esta doação, na opinião
de Alexandre Herculano, ficaram reduzidos à simples classe de cavaleiros vilãos (Herculano, 1987:
137-138, 160). Outro dos herdamentos foi Sarzedas, junto a Castelo Branco, à
qual outorgaram o seu primeiro foral em 1212, subordinado ao Concelho da
Covilhã com vista ao seu repovoamento (Machado, 2004: 192, 193). Logo depois,
este Gil Sanches, na sequência da guerra civil e da morte de D. Sancho I
(1211), pelo qual tomou partido contra D. Afonso II, exilou-se para Leão. Há autores
que sugerem que ele apenas acompanhou a sua mãe, a Ribeirinha, quando
esta foi raptada para aí (Machado, 2004: 191-193). Quanto a Paio Pais, não
sabemos se terá ficado em Portugal.
D. Soeiro Pais de Valadares (c. 1211), cavaleiro e fronteiro de D. Sancho II (1223-1248)
que tomou por honra o lugar da Moita,
e Águas Belas, no então
concelho de Sortelha (hoje do Sabugal). Está documentada a sua presença na
corte de D. Afonso II (1185-1223), como tenente
de Riba Minho (1222)[26]. Em
1225 surge como mordomo de D. Afonso IX de Leão em nome do Infante D. Pedro
Sanches, o que atesta a mobilidade entre as estas duas cortes Ibéricas,
regressando no ano seguinte a Portugal para reassumir a tenência anterior,
desaparecendo novamente da corte entre 1248 e 1250; o que nos faz supor que se
juntou às hostes de Infante D. Afonso (Pizarro, 1997: 792-795), que estava na
posse da Guarda e da Covilhã, na luta contra os partidários do rei D. Sancho
II.
D. Maria Pais (c. 1248), coeva da homónima favorita de D. Sancho I.
Ficou conhecida por ter deixado todos os seus bens (incluindo um castelo) na
vila de Trancoso à Ordem do Templo, no ano de 1248 (Capelo, 2003: 169).
Afonso Pais Correia (c. 1287), cavaleiro com património na Covilhã,
o qual em 1290 trazia 6 casais na freguesia, de Teixoso, honrados por seu bisavô Soeiro Raimundes de Riba de Vizela (ANTT, Inq.
de D. Dinis, L° 9, u.34).
Estêvão Pais de Paiva (c. 1360), senhor da
honra de Sobrado (Sobrado de Paiva, em Castelo de Paiva), o qual teve a filha
herdeira D. Leonor Vasques Soares (c. 1400), casada com Gonçalo Vaz de Castelo
Branco (c. 1390), o primeiro deste nome[27], natural
de Castelo Branco, terra de onde tirou este apelido, descendente de um Vasco
Pais (c. 1325), alcaide-mor de Monsanto e da Covilhã.
Bastante
mais tarde, já no princípio do século XVII, vamos encontrar alguns Pais na
aldeia da Capinha, hipotéticos descendentes de João Pais do Sabugal, os quais
terão tido alguma proeminência, como se pode constatar.
O mais antigo destes, depois de um hiato de mais de três séculos, é D. Maria Pais, outra homónima da Ribeirinha, a quem é atribuída a instituição de um morgado na Capinha (possivelmente uma capela vinculada), e foi casada com Francisco Mendes Geraldes, capitão de Ordenanças, do qual teve uma filha, que foi[28]:
D. Maria Mendes Pais (f. 1712), falecida a 12-III-1712 e sepultada na igreja paroquial da Capinha, junto ao altar de Nossa Senhora do Rosário (Ramos, 1999: 97), casou nas segundas núpcias de António Mendes Castelo Branco (b. 1627) [29], baptizado a 7-XII-1627, natural de Loriga, concelho de Seia, residente na Covilhã, assim como na rua Direita na Capinha onde tinha vários bens emprazados que pagavam foro à Abadia da Estrela[30], o qual foi fidalgo de cota de armas por carta de 26-II-1653 (Borrego, 2003:58)[31], monteiro-mor da Covilhã, capitão de Auxiliares de Infantaria (de 1657 a 1660), e juntamente com seu pai combateu na guerra da Restauração (de 1647 a 1654), e foi familiar do Santo Ofício (carta de 26-9-1659), e ainda cavaleiro professo da ordem de Cristo com uma tença de 12$000 réis (carta de 21-I-1676)[32]. Este casal, nesta época, constituiu a família mais poderosa da Capinha, e a ele se ficou a dever a edificação da anterior Casa do Adro em 1673, a qual resultou da ampliação de uma outra casa anterior. Seu marido era filho primogénito de Domingos Mendes Castelo Branco (n. 1590?), tabelião do Público, Judicial e Notas de Loriga e Alvoco da Serra (carta de 3-6-1626), assim como capitão de Auxiliares de Loriga e suas anexas, combatente na Guerra da Restauração na qual travou as batalhas de Elges, São Felices, Vila Vieja e Bugaio, e esteve na tomada de Coria, cuja lendária bravura lhe valeu a alcunha de "o Mil Diabos" que transmitiu aos seus descendentes[33], e foi casado com D. Catarina do Pomar e Abreu (1590?-1651), natural de Loriga, onde veio a falecer a 15-VII-1651.
D.
Maria Mendes Pais (f.
1712), e António Mendes Castelo Branco
(b. 1627), tiveram por neto António
José Pereira Pinto de Figueiredo Castelo Branco (c. 1740), natural e
morador na Capinha, monteiro-mor do Fundão, fidalgo de cota de armas (carta de
22-X-1796), esquarteladas de Castelo Branco, Pinto, Pereira e Figueiredo
(Baena, Vol. I, 1872: 61,62); o qual foi casado com D. Rosa Angélica Bernardina
Ricacho Taborda (n. 1744), natural de Vale de Prazeres.
Já no
nosso tempo, e por sucessão familiar, foi herdeira da Casa do Adro D. Maria
Belarmina Franco Pinto Castelo Branco (1905-1980), nascida a 24-XI-1905 na
Capinha, filha de José Pinto Tavares Osório Castelo Branco (1875-1914) e de D. Maria Belarmina Capelo Franco Frazão (1869-1936)[34].
Esta senhora casou a 25-VIII-1943 com D.
Manuel de Vasconcelos e Sousa (n. 1910)[35], o qual edificou a actual Casa
do Adro. Deste casamento nasceu o filho herdeiro D. Luís Maria Pinto de Castelo Branco Vasconcelos e Sousa (n. 1946),
actual senhor desta casa, casado com D.
Elisa Massano Reiche (n. 1944), com geração.
6. CONCLUSÃO
Ao certo, ficamos a conhecer um pouco deste João Pais que redescobrimos a partir de uma pedra de armas – o que prova a importância da heráldica. Supomos ser oriundo da pequena nobreza medieval e, com mais probabilidade terá sido um fundador/repovoador da Capinha moderna.
Originário do concelho do Sabugal, já estaria nestas terras por volta de 1230, segundo depreendemos pelo que foi declarado nas Inquirições Dionisinas. Como era habitual nestes casos, pagaria ao rei e ao concelho da Covilhã os direitos de usufruto da terra.
O que o levou a abandonar as terras do Sabugal, nunca o saberemos ao certo. Se aí viveu ao tempo dos leoneses, sendo cavaleiro, é de supor a sua participação nas lutas fratricidas que neste reino se travaram até à sua integração em Castela, com a morte do rei de Leão em 1230. É por volta deste ano que ele supostamente apareceu na Rapoula, depois aldeia da Capinha, talvez dependente da protecção de familiares que serviam D. Sancho II.
Deduzimos que João Pais terá
vindo para estas paragens alardeando a sua origem leonesa, daí o leão – símbolo
heráldico deste reino (?) – que ostenta na sua presumível representação
heráldica. Estabeleceu a sua quintã (propriedade senhorial), em terras que lhe foram doadas,
ou das quais se apoderou como tantas vezes sucedia, na qual edificou uma casa-forte com a sua torre defensiva isolada no
topo de um outeiro, sinal claro da sua autoridade. A partir daí foi desbravando
as terras cultiváveis à sua volta, então quase despovoadas devido aos conflitos
que as assolaram anteriormente esta região.
Planta da Capinha. |
Orgulhoso da sua situação de cavaleiro, que ostenta, seria um
guerreiro esforçado, hábil na manipulação das armas da época e, destas suas
qualidades, fez alarde na sua representação heráldica, profusamente carregada
de instrumentos bélicos, a qual terá estado inicialmente na sua casa-torre.
Como homem da guerra, não terá tido descanso, pois, certamente foi envolvido no longo conflito pelo poder que estalou em Portugal. Falamos da sanguinária guerra civil entre D. Sancho II e a Igreja que se aliou ao seu irmão mais novo o conde de Bolonha e futuro D. Afonso III. Este último chegou a Portugal em 1245, com o apoio do infante D. Afonso de Castela, o qual entra em Portugal por Ribacôa: tudo isto num contexto de gravíssima crise económica e de fome, de deslealdade e de traições, em que o rei legítimo é excomungado pela Santa Sé (1234), deposto e exilado em Toledo, então a capital de Castela (já unida a Leão), onde morre em 1248.
Do lado do rei legítimo, estaria a Ordem do Templo e a maior parte da Beira (Herculano, 1987: 112, 113); porém, logo no início do conflito a Covilhã e a Guarda ficam nas mãos do infante D. Afonso, sendo poste-
riormente retomadas por D. Afonso de Castela, aliado do rei português. Esta sucessiva alternância, de mando e de poder, devastou este território com as atrocidades da guerra, das quais, talvez João Pais tenha sido uma das vítimas.
Com a queda do rei legítimo, alguns dos seus partidários – terá sido o caso de João Pais? – retornari-am ao exílio em Castela (à semelhança do que aconteceu com o anteriormente mencionado Gil Sanches, o povoador de Sarzedas). Muitos deles perderam os seus bens a favor dos seus inimigos ou da Igreja, os vencedores neste conflito. Nunca vamos saber o que aconteceu a esta família de povoadores, porém, parece ter deixado descendência nesta aldeia.
É neste
quadro de instabilidade e de guerra que, um pouco mais a sul, Martim Calvo o
povoador e senhor de uma quintã ao Fundão –
com a sua provável torre defensiva –, a perde para o cavaleiro Joham Esteves da
Covilhã[36], segundo mencionam as já citadas inquirições.
Por documentos, ficamos a saber que no reinado de D. Sancho II (1223-1248) o mosteiro de Maceira tomou a João Pais a aldeia de Capinha, em cuja posse devia andar nos finais do século XII, princípios de século XIII, ao tempo da criação do concelho do Sabugal (1190) por D. Afonso IX rei de Leão (1188-1230), ao qual este poderá ter servido (?)[37].
Mais
tarde, com a pacificação da fronteira em
1297 pelo tratado de Alcanizes (Ancañices, em castelhano), a pequena torre
aí edificada perdeu a sua importância estratégica e entrou em ruína, o que
levou os seus herdeiros (?) a fixarem-se um pouco mais abaixo, onde edificaram
a antiga Casa do Adro (1673), para a qual levaram esta magnífica representação heráldica, símbolo da sua anterior importância
social.
Esta pedra, vinda da casa-torre – caso não tenha sido uma laje destinada à sua sepultura – que inicialmente estaria no cimo do outeiro próximo, após a sua destruição ou ruína, terá mudado de lugar para a Casa do Adro, um pouco mais abaixo. As várias reedificações desta casa através dos séculos, levaram este brasão até ao local em que se encontra actualmente.
Capinha, portal com uma Cruz de Templária (pormenor) |
Capinha, portal com uma Cruz Templária. |
Com
surpresa nossa, no cimo da Rua do Castelo, nas proximidades do local onde terá estado a
antiga casa-torre, fomos localizar um pequeno portal cujo lintel, reaproveitado
de uma edificação anterior[38], ostenta um escudo amendoado com
uma cruz escavada. Esta cruz poderá representar a Ordem do Templo.
Muito mais tarde, os seus
prováveis descendentes vieram a aliar-se matrimonialmente aos Castelo
Branco, outra estirpe de guerreiros e alcaides-mores de vários castelos, cujo apelido se sobrepôs ao de PAIS,
do quais se perderia a lembrança que aqui recuperamos para reforçar um pouco da
identidade perdida desta pequena
localidade.
Certamente que muito do que aqui deixamos registado será
controverso mas, na ausência de documentação clarificadora da época aqui
abordada, não serão de rejeitar algumas hipóteses aqui expostas aos futuros
investigadores, para que possam avançar em busca de novas conclusões melhores
fundamentadas.
João Trigueiros
* Mestre de Museologia e Património pela
FCSH-UNL
_________________
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__________
Notas:
[1] António Lino (1914-1961)
começou por seguir o revivalismo-nacionalista de seu tio, o arquitecto
Raul Lino (1879-1974), e mais tarde foi autor de dois projectos de tendência
modernista: o gigantesco pórtico do
Monumento ao Cristo-Rei em Almada (1948-1959), e a Igreja de São João de Deus
na Praça de Londres (1951-53) em Lisboa.
[2] Vasconcelos – Três
faixas veiradas.
[3] Cf. Trabalho de investigação de Luiz Fernando
Carvalho Dias, cuja obra, em parte inédita, está agora a ser editada por seu
filho Miguel Nuno P. Carvalho Dias em
[4] Cavaleiros
prováveis com este nome, no concelho da Covilhã, apuramos três: o 1.º - João
Esteves (c. 1235), filho do alcaide da
Covilhã, que veio a ser senhor da aldeia do Alcaide, o qual tomou a quintã de
Martim Calvo no Fundão; o 2.º - João Ramires (c 1314), da ordem do Hospital,
que trazia Escarigos; o 3.º - João Pais do Sabugal, que, tanto quanto
parece, é o único deles com ligação à Capinha.
[5] Nas convenções
actuais o leão é representado voltado à dextra.
[7] No reinado de
D. Afonso Henriques (1139-1185) viveu Giraldo Giraldes "o Sem Pavor",
que António Carvalho da Costa diz ter sido beirão (in Corografia Portuguesa,
Liv.º 2.º, Tract.° 1.º, Capitulo I). Dizem os nobiliaristas que os Silveiras de
Sortelha dele descendiam (in Brandão, Monarquia Lusitana, parte III, Liv.° 11,
p. 10).
[8] De Álvaro
Pais, chanceler-mor de D. Pedro I e de
D. Fernando, casado em primeiras núpcias com Leonor
Geraldes.
[9] Alcañices, em castelhano.
[10] «Catálogo de todas as igrejas, comendas e mosteiros
que havia nos reinos de Portugal e Algarves pelos anos de 1320 e 1321 com a
lotação de cada uma dela»,
afim de sobre elas serem cobradas décimas pelo monarca, por um período de três
anos, destinadas a financiar as despesas militares. – Há várias
localidades e sítios denominados Rapoula, pelo que não deve ser confundida com
a Rapoula do Côa, situada 55 Km a norte, para lá da cidade da Guarda.
[11] A sua capa é
uma é uma carta de D. Álvaro, bispo de Silves, dada em 1456. O seu conteúdo
regista diversos contractos de doação, compra, escambo e aforamento; todos eles
no intuito de concentrar o seu património rústico, nomeadamente na Capinha e Rapoula.
[13] Cf. “poula” in ALVARELLOS, Leandro Carré, “Diccionário
Galego-Castelán”, 1951.
[15] O nome da
cidade de Castelo Branco poderá ter
uma origem semelhante pois, só surge em 1213 no foral que lhe foi dado pelo
mestre Pedro Alvites (f. 1223), e terá origem, quanto a nós, na alcunha de Castelo dos Brancos – castelo dos monges guerreiros do manto
branco –, ao arrepio da velha tradição que deriva o topónimo da cor
esbranquiçada do quartzito das suas
pedras. Nesta paisagem, o incomum, não era a cor da pedra desta edificação
militar, que era vulgar nesta zona, mas os imponentes e compridos mantos
brancos dos seus novos defensores, os Templários, que as populações locais
desconheciam até então.
[16] O reinado de
D. Sancho II foi assolado por diversas guerras civis, nomeadamente a travada
com D. Afonso, futuro rei D. Afonso III de Portugal (1248-1279), na qual veio
em seu auxílio D. Afonso de Castela que entra em Portugal por Ribacôa a
20-XII-1246 e toma a Covilhã e a Guarda, pelo que esta região certamente não
foi poupada à destruição e à mudança de mãos de muitos castelos e propriedades
senhoriais.
[17] Esta pesquisa
foi facilitada pela consulta do trabalho de investigação histórica feita pelo
falecido covilhanense Luiz Fernando Carvalho Dias, cuja obra inédita está agora
a ser editada por seu filho Miguel Nuno P. Carvalho Dias em http://covilhasubsidiosparasuahistoria.blogspot.pt/2012/10/covilha-os-tombos-i.html
[18] Segundo alguns
autores, este mosteiro cisterciense foi fundado com licença concedida em 1220
pelo bispo da Guarda ao abade D. Mendo de
Maceira Dão (Mangualde), daí o nome de
maceira. Nunca foi acabado e em 1579 foi extinto. Os seus monges
cistercienses dedicavam-se a desbravar terras incultas.
[20] D. Afonso IX
(1171-1230) foi casado em primeiras núpcias em 1191 com sua prima direita D.
Teresa Sanches, filha do rei D. Sancho I de Portugal (1154-1211) o fundador das
cidades da Covilhã (1186) e da Guarda (1199).
[21] Os outros
filhos: 2.º – Martim Moniz de Cabreira, morto pelos mouros na tomada de Lisboa,
segundo a tradição muito pouco provável devido à cronologia dos factos que não
cabe aqui a explicação; 3.º – Maria Moniz de Cabreira (n. 1150), a qual não
sendo casada teve um filho de onde provêm os Machados.
[22] Foi sua neta em quinta geração D. Maria Rodrigues de
Paiva, que veio a casar com Vasco Pais de Castelo Branco, pais de outro Vasco
Pais de Castelo Branco (c. 1350), alcaide-mor da Covilhã e de Monsanto.
[23] Esta alcunha,
não ficou a dever-se à sua naturalidade, mas ao facto da sua família ter
algumas possessões (heranças de padroados, quintãs, etc.) em Ribeira de Pena.
Era donatária de terras no concelho de Trancoso (em Reboleiro e Palhais).
[24] Quebrada - Depressão
com saliências em terreno montanhoso. Neste caso pode ter um significado mais
antigo: propriedade pequena ou courela.
[25] Gil Sanches
(f. 1236) passaria à corte do rei D. Afonso IX de Leão de 1214 a 1219.
[26] Tenência –
Chefia militar em nome do Rei.
[27] Esteve na
conquista de Ceuta com sete dos seus filhos.
[28] Informação do
Professor Doutor Joaquim Candeia da Silva.
[29] As primeiras núpcias foram com D. Maria de
Gouveia de Pina, da Covilhã, filha de
Sebastião de Gouveia Pina e de Brites Teixeira; neta paterna de António de
Gouveia e de Isabel Mendes; e neta materna de Francisco Caldeira e de Isabel
Teixeira, todos naturais da Covilhã (IAN/TT, Tribunal do Santo Oficio, Conselho
Geral, Habilitações, António, mç. 11, doc. 415).
[30] Tinha diversas propriedades e duas casas onde
vivia na Rua Direita na Capinha, das quais pagava foro à Abadia em 1641:
"# Paga mais o mesmo Antº Mendes de Castel Branco / das casas em q vive
três quartas de trigo por / prazo f. a D.ºs Mendes no anno de 1641. # Paga mais
o mesmo do cham de fronte da es / talage mº alq. de centeo. Pello mesmo pra /
so atrás feito a D.ºs Mendes no anno de 1641 (…) paga da / tapada quatrocentos
e vinte rs. Por pra / so feito a D.ºs Mendes na Estrella pello t.ªm / M.el
Ribr.º no anno de 1641", como consta do «Foral do Real
Colégio de S. Bernardo e da sua Abadia da Estrela. Feito em 1680 por Frei
Benedito de S. Bernardo» (pp. 542v.,
543v. e 547v.)
[31] Armas de Castelo Branco, por diferença, uma
flor-de-lis de prata. – Os Castelo Branco e os Pais, já se tinham unido em
várias gerações durante a Idade Média.
[32] IAN/TT, Registo Geral de Mercês, Ordens,
liv.10, fl.127.
[33] A alcunha de
"o mil diabos" foi usada
por outros seus descendentes, os quais combateram nas guerras napoleónicas, e
nas lutas liberais; facto este que tem confundido vários estudiosos da
genealogia desta família.
[34] D. Maria Belarmina Capelo Franco
Frazão (1869-1936) era irmã de José Capelo Franco Frazão (1872- 1940), 1.º
conde de Penha (29-I-1900), senhor Casa do Vale Dourado na Capinha; filha de João António de Oliveira Franco Frazão Castelo Branco, grande
proprietário da província da Beira Baixa, presidente da Câmara do Fundão,
governador civil e presidente da Junta Geral do distrito de Castelo Branco,
deputado em várias legislaturas e par do Reino, e de sua mulher D. Maria Amélia
Capelo da Fonseca
[35] D. Manuel de
Vasconcelos e Sousa (n. 1910) é filho de Luís de Vasconcelos e Sousa, fidalgo
da Casa Real, e de sua mulher D. Maria do Carmo Rebelo de Andrade.
[36] “Joham estevez cavaleiro em tempo del Rey dom
ssancho [II]”, filho de D. Estevão
Anes (c. 1235), alcaide da Covilhã, que veio a ser senhor da aldeia do Alcaide,
no concelho do Fundão.
[37] D. Afonso IX
de Leão reconquistou Cáceres (1229), Mérida e Badajoz (1230), as quais estavam na
posse dos mouros almóadas
[38] Esta
pedra, originalmente, terá estado disposta na vertical.
___________
Obs:
Texto editado na
EBUROBRIGA, n.º 8, 2015, pp. 73-90.
Museu Arqueológico Municipal José Monteiro do Fundão.
(esgotada)