GENEALOGIA



             O estudo das linhagens, já praticado na Antiguidade Clássica, desenvolveu-se na Europa Medieval quer pelo culto ancestral da memória dos antepassados, quer devido às necessidades criadas com as sucessões dinásticas, a transmissão de títulos ou morgados. A ela se recorria frequentemente nas inquirições de genere habilitações destinadas a provar a limpeza de sangue, sem a qual não era possível o ingresso nas ordens religiosas e militares, ser familiar do Santo Ofício ou encartar-se em determinados cargos.
A demonstração da limpeza de sangue não existiu apenas da Europa Ocidental, pois ela era comum a várias épocas e religiões fora do espaço europeu.
Como ensina o Doutor João Figueirôa-Rego (A Honra Alheia por um fio, FCC, 2009), o sangue «enquanto fluído essencial à vida, fez sempre parte do capital simbólico da Humanidade, a despeito das diferenças culturais existentes nas diversas sociedades», o qual, muitas vezes, era oferecido sacrificialmente em defesa de uma causa ou como expiação. A transversatilidade deste conceito, tão caro ao cristianismo, constata-se também no judaísmo. Houve tempos em que pela Lei de Moisés «só poderia ascender ao sacerdócio quem provasse descender de Abraão», daí a necessidade de estudos genealógicos hebraicos, como ensina o Professor Figueirôa-Rego.

Entre nós, durante algum tempo, após a abolição da necessidade de fazer provanças, a Genealogia foi desprezada, mal amada como uma actividade de ociosos, e injustamente ridicularizada por ser considerada um de catálogo de vaidades. Porém, como uma das ciências auxiliares da História, ela estuda as origens das famílias e a sua evolução através das sucessivas gerações, o que a torna particularmente útil a diversos ramos do saber. Ao traçar uma sucessão de biografias familiares, a Genealogia fornece-nos informações que permitem uma abordagem sociologicamente relevante do trama social que animou a vida da nação, assim como dos diversos valores dominantes em relação com os grandes ciclos políticos e económicos com vista um melhor conhecimento do passado.
Para alguns estudiosos a Genealogia é uma ciência social autónoma relacionada com a história da família, servindo de apoio à biologia, à medicina, à antropologia, à demografia e, principalmente, à genética: tudo isto sem deixar de ser também uma técnica com fins meramente culturais e recreativos. Ela é um passatempo apaixonante na busca do passado familiar e de pontos de referência contra o desenraizamento individual, ou reacção salutar contra a massificação da sociedade actual.
A investigação genealógica atravessa actualmente uma grande fase de reabilitação. É bom observar o número crescente dos seus cultores, cada vez mais jovens, em demanda das diversas bibliotecas e arquivos desta especialidade, na gratificante aventura da descoberta do passado familiar.
Registamos com apreço o aparecimento de algumas publicações recentes de genealogia e heráldica, assim como a reedição de algumas obras fundamentais. O recente interesse por estes dois antiquíssimos ramos da História é extensivo a muitos outros países, mesmo àqueles onde nunca houve grande tradição aristocrática.
Esta aliciante procura das origens, passado mais um século de estagnação, têm sido objecto de inúmeras conferências, exposições, debates, cursos livres em universidades e encontros patrocinados por várias organizações internacionais; sinais estes da sua vitalidade e aceitação por um público cada vez mais vasto.

O mais antigo genealogista português que se conhece é D. Pedro (1289-1354), conde de Barcelos, filho bastardo rei D. Dinis, autor do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Em épocas subsequentes a este autor, foram produzidos em Portugal inúmeros trabalhos manuscritos desta especialidade, dos quais se conserva um grande acervo na Torre do Tombo. Todos os tratados de genealogia nobiliária andam associados à heráldica, da qual se conhecem algumas obras elementares à sua iniciação. Uma delas, manancial detalhado de preciosas informações técnicas, da autoria de Luís Stubbs Saldanha Monteiro Bandeira, é o Vocabulário Heráldico (Lisboa, 1984); outra, é o reportório das armas das diversas famílias nacionais da responsabilidade de Afonso Eduardo Martins Zúquete, a qual tem o título de Armorial Lusitano (Lisboa, 1987).
Recorrendo a alguns autores antigos e a diversos manuscritos de linhagens, existe uma obra em doze volumes da autoria de Felgueiras Gaio, o Nobiliário das Famílias de Portugal (Braga, 1938), a qual constituíu uma peça fundamental para o estudo que empreendemos, pelas pistas que nos forneceu para posterior aprofundamento e confirmação documental.
Manuel José da Costa Felgueiras Gaio (1750-1831), juiz, natural de Barcelos, era senhor da Casa da Torre Velha no Louro, da Casa do Paço em Vitorino das Piâes, do Vínculo dos Felgueiras em Vila do Conde e, acima de tudo, possuidor de uma grande paixão pela Genealogia. A enorme fortuna que possuía facultou-lhe a possibilidade de dedicar grande parte da sua vida a esta ciência, a qual o levou a escrever nada menos do que 33 tomos genealógicos. Linhagista de mérito, produziu um trabalho de grande e valia, ao qual todos os investigadores da especialidade, apesar dos erros e imprecisões nele contidos, não podem deixar de recorrer. Foi o nosso caso e, por isso, aqui lhe prestamos tributo, pois sem a sua contribuição não seria possível ter-se produzido parte deste trabalho, nomeadamente como ponto de partida para pesquisar as origens da família aqui em estudo.
Outro autor genealógico que nos foi indispensável e muito contribuiu para esta modesta obra, foi Manuel Rosado Marques de Camões e Vasconcelos (1899-1978), autor de dois volumes intitulados Oliveiras e Cunhas da Casa do Outeiro Termo do Fundão (Lisboa, 1962), que nos dão a conhecer os principais ramos da família Trigueiros Martel. Manuel Rosado, distinto membro do Instituto Português de Heráldica e autor de vários estudos genealógicos sobre a nobreza das Beiras, interessou-se por esta família devido ao facto de ter casado com D. Maria da Conceição de Albuquerque da Costa Brandão, filha do 2.º Visconde do Ervedal, descendente dos Oliveiras e Cunhas. Por esta sua obra de grande utilidade, muito gratos lhe estamos.

Uma outra ciência auxiliar da História, associada à Genealogia desde o início do século XII, é a Heráldica, a qual tem por fim a formação e descrição simbólica de instituições, acontecimentos ou qualidades individuais e familiares que se devem perpetuar. A composição de um brasão de armas obedece a um conjunto de regras bastante rigorosas, assim como a alguns preceitos estéticos elementares.
Sabemos que a Heráldica, numa forma incipiente, já era conhecida desde tempos imemoriais na Grécia Clássica, pois, já Homero se lhe refere nas suas descrições dos símbolos pessoais usados pelos guerreiros. A arte de compor brasões adveio da necessidade dos antigos chefes militares se identificarem por simbologia bem visível e de se agruparem em torno de uma bandeira no campo de batalha. O escudo heráldico deriva do escudo de guerra usado pelos guerreiros medievais, no qual representavam as suas armas para se distinguirem uns dos outros. A forma do citado escudo, usada em Portugal, apresenta o bordo inferior boleado, porém é vulgar a representação de formas mais fantasiosas, regra geral de origem estrangeira.

Foi no reinado de D. João I (1385-1433), posteriormente à batalha de Aljubarrota (1385), que pela primeira vez se institucionalizou a arte heráldica com a criação de regras para o uso de brasões. Esta nova necessidade ficou a dever-se ao facto de grande parte da nobreza emergente da nova ordem social ter cometido alguns abusos, pois viria a apropriar-se indevidamente de brasões de famílias nobres extintas por terem seguido o partido de Castela. Com o fim sanar a confusão reinante instituiu-se um corpo de oficiais de armas, tais como reis de armas, arautos e passavantes. Competia a estes funcionários régios registar e impedir o uso abusivo de brasões, assim como zelar para que a composição destes se fizesse de acordo com as sua regras próprias. Porém, só no reinado de D. Manuel I (1495-1521), após várias reformas, a heráldica atingiu a perfeição.

João Trigueiros

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